MILÃO - A ITÁLIA CHIQUE
"O que você vai fazer lá? Negócios?",
costumam debochar os romanos, sempre que encontram algum turista
estrangeiro interessado em visitar Milão. Aliás, não são só os
romanos. Os italianos em geral não perdem a oportunidade de dizer que a
segunda maior cidade da Italia, apesar de rica, elegante e poderosa, é um
zero à esquerda em atrativos. "Vá a Florença, fique mais tempo em
Veneza", sugerem, ferinos, em sua vingança particular contra os
milaneses.
É compreensível. Plantada no extremo norte do país,
quase escapando do mapa em forma de bota, Milão está tão distante de
Roma quanto de Munique, na Alemanha. Ou tão perto de Lyon, na França,
quanto de Florença. E não faz o menor esforço para desmentir o título
de "cidade menos italiana da Itália". Pelo contrário, gosta de
ser vista como um reduto europeizado, mais moderno e globalizado que o
resto do país. A esnobe Milão assume sua riqueza, torce o nariz para os
imigrantes e, às vezes, dá até a impressão de esconder seus tesouros
dos visitantes. Mas, nem por isso, deve ser ignorada - muito menos por
nós, brasileiros, que não temos nada a ver com o regionalismo deles.
Apesar dos pesares, algumas atrações milanesas são
pomposas demais para passarem despercebidas. É o caso, por exemplo, do
Duomo, a maior catedral gótica da Itália, ornamentada com nada menos que
3 000 estátuas! É uma construção tão meticulosa, que levou cinco
séculos - ou exatos 511 anos para ficar pronta. Se você, por acaso,
assistiu a Rocco e Seus Irmãos, genial filme de Lucchino Visconti que
retrata a dura adaptação dos italianos do sul na Milão dos anos 60, vai
se lembrar dessa monumental igreja. É no topo dela que Alain Delon e
Annie Girardot trocam beijos apaixonados, sob o olhar condescendente da
Madonnina d´Oro, a imagem de Nossa Senhora que abençoa Milão lá de
cima. Quem vai a Milão também sobe para ver a cidade do alto e - por que
não? - fazer um pedido à Madonnina mais de perto.
Ainda na Piazza del Duomo, a apenas alguns passos da
catedral, a Galeria Vittorio Emanuele fervilha de gente. Majestosa, com um
portal da altura de oito andares, piso de mármore e magníficos vitrais
na cobertura, a galeria é outro ícone da cidade. Erguida numa época em
que ainda não havia shopping centers, é uma espécie de rua coberta, mas
muito mais ampla e suntuosa do que qualquer avenida com um telhado em
cima. Milaneses e forasteiros, sejam milionários ou durangos, passam
horas ali dentro, indiferentes ao tempo que estiver fazendo lá fora.
Todos circulam à vontade entre as lojas e restaurantes
da galeria, mas é fácil distinguir um grupo do outro - e não só porque
os locais sejam mais formais e elegantes do que os turistas. É que eles
nunca participam de um ritual para o qual os visitantes fazem fila: pisar
com um dos calcanhares nos testículos de um touro pintado no chão, bem
no centro da galeria, e girar o corpo numa volta completa. O efeito,
dizem, é o mesmo prometido pela moedinha que se joga na Fontana di Trevi,
em Roma: dá sorte, garante a volta do forasteiro à cidade etc. Na
verdade, esta é a melhor prova de que o milanês, ao contrário de todas
as lendas, possui senso de humor. É só observar o olhar maroto dos
sisudos senhores por cima do jornal, espiando tamanha ridícula cena.
O terceiro tesouro de Milão é o Castelo Sforzesco.
Construído 150 anos antes da descoberta do Brasil, é hoje um imenso
museu, carregado de obras valiosíssimas - entre elas, a última escultura
de Michelangelo, a Pietà Rondanini, inacabada, por sinal. O castelo
porém, era mais freqüentado por outro gênio do Renascimento, Leonardo
da Vinci, que viveu aqui dos 30 aos 47 anos. Leonardo voltou a Florença
em 1499, quando Milão caiu nas mãos dos franceses, mas deixou na cidade
uma de suas obras mais marcantes: o Cenaculo, um afresco de nove metros de
comprimento por quatro de altura, gravado numa parede do convento de Santa
Maria delle Grazie. É o quadro mais famoso que existe da última ceia de
Cristo, e também o mais copiado. Mas poucos sabem que o original fica em
Milão.
Para os amantes da arte, este já é um motivo
suficiente para visitar Milão. E quem vier agora até participa de uma
célebre discussão envolvendo a obra. É que, depois de séculos de
contínua deterioração, e de um processo de restauração que se
estendeu por nada menos de 22 anos, o Cenaculo finalmente voltou a ser
exibido com as cores originais, em maio último. A harmonia da cena e a
riqueza de detalhes nas expressões de Jesus e seus 12 apóstolos costumam
hipnotizar os espectadores por longos minutos - às vezes, horas. O traço
de Leonardo ficou mais nítido do que nunca, mas isso não agradou a
todos. Os romanos, é claro, meteram o pau.
Assim como não alardeia a obra-prima de Leonardo,
Milão também não mexe um dedo para dar ao Teatro Scala uma aparência
mais vistosa e condizente com a sua fama. De fato, quem passa pela
primeira vez diante desse teatro lírico - que não é só o mais
importante de Milão, mas de todo o mundo - não faz a menor idéia do
palco deslumbrante, e carregado de história, que existe por trás da sua
fachada discreta e cinzenta. Dentro, porém, o Scala surpreende com a mais
luxuosa combinação de vermelhos e dourados jamais vista num teatro. Um
lustre de cristal com 365 lâmpadas pende, cintilante, do teto. Na sala de
espetáculos, espalham-se 3000 lugares, embora, por medida de segurança,
só sejam vendidos 2000 bilhetes por vez.
Além de mais solene, o Scala também é o palco mais
severo para os artistas líricos. Da mesma forma como os torcedores
brasileiros vaiam até minuto de silêncio em jogos de futebol, o
implacável público milanês também não perdoa a menor hesitação de
tenores e sopranos. Em compensação, uma consagração no Scala tem um
valor eterno. Pavarotti, que aqui já foi vaiado e aplaudido de pé, que o
diga. O compositor brasileiro Carlos Gomes é outro que sentiu na pele o
peso do teatro de Milão: só ganhou o reconhecimento mundial ao
apresentar O Guarani no Scala , em 1870.
Ver uma partida no estádio San Siro, aos domingos, continua sendo
um programão - e não só para os amantes do futebol. Se não for jogo do
Inter, será do Milan, outro ex-campeão mundial, onde brilham mais dois
brasileiros, Leonardo e Serginho.
A exigente Milão também sabe ser hospitaleira,
boêmia e generosa. Só é preciso estar no lugar certo e na hora certa.
Como nas ruas estreitas do charmoso e tradicional bairro de Brera, num
sábado de manhã, quando acontece a feirinha de antiguidades da Via
Madonnina, com uma notável oferta de badulaques. Os nomes peculiares das
ruas vizinhas, como Via Fiori Chiari (Flores Claras) e o da Via Fiori
Oscuri (Flores Escuras), também revelam o lado mundano da cidade -
referem-se às belas "flores" que um dia habitaram a região, as
prostitutas. Hoje, seus antigos apartamentos são disputados a tapas, mas
o ambiente boêmio permanece nos inúmeros bares e bistrôs. São dezenas
de locais que fervilham à noite, com música ao vivo, geralmente jazz.
O bairro tem ainda outra grande atração, a Pinacoteca
di Brera, que fica num palácio barroco e exibe uma das mais ricas
coleções de pinturas a óleo da Itália, com mais de 500 telas. Você
poderá voltar a pé para o centro, atravessando o chamado quadrilátero
da moda, formado pelas vias Montenapoleone, Della Spiga, Santo Spirito e
Sant´Andrea, onde ficam as lojas mais chiques de
Milão. São tão importantes quanto as de Paris - claro que aqui você
ouvirá que são mais importantes. Mas essa é outra briga que você não
precisa comprar. Deixe que eles, italianos, se entendam. E siga em frente,
apenas apreciando.